O Homem Medíocre - José Ingenieros (02.01.2007)
Dir-se-ia que é uma revivescência de antigos atavismos. Os homens se vulgarizam quando reaparece, em seu caráter, o que foi mediocridade nas gerações ancestrais: os vulgares são medícores de raças primitivas; ter-se-iam perfeitamente adaptado em sociedades selvagens, mas carecem da domesticidade que os contundiria com os seus contemporâneos. Se conserva uma dócil aclimatação em seu rebanho, o medíocre pode ser rotineiro, honesto e manso, sem ser decididamente vulgar. A vulgaridade é uma acentuação dos estigmas comuns a todo ser gregário; só floresce quando as sociedades se desequilibram sem prejuízo do idealismo. É a renúncia ao pudor do ignóbil. Nenhum esforço original a comove. Desdenha o verbo altivo e os romanticismos comprometedores. Seus esgares são fofos, sua palavra muda, seu olhar opaco. Ignora o perfume da flor, a inquietude das estrelas, a graça do sorriso, o rumor das asas. É a inviolável trincheira oposta ao florescimento do engenho e do bom gosto; é o altar onde Panurgo oficia, e Bertoldo cifra o seu sonho em servir-lhe de coroinha.
A vulgaridade é o brasão nobiliárquico dos homens orgulhosos de sua mediocridade; guardam-na, como um avarento o seu tesouro. Têm o maior prazer em exibi-la, sem suspeitar de que ela é a sua afronta. Estoura inoportuna na palavra ou no gesto, rompe, num único segundo, o encanto preparado em muitas horas, esmaga, sob seus sapatos, toda eclosão luminosa do espírito. Incolor, surda, cega, insensível, rodeia-nos e nos espreita; deleita-se com o grotesco, vive às escuras, se agita nas trevas. É, para a mente, o que são, para o corpo, os defeitos físicos, a coxalgia e o estrabismo: é incapacidade de pensar e de amar, incompreensão do belo, desperdício da vida, toda a sordidez. A conduta, em si mesma, nem é distinta nem é vulgar; a intenção enobrece os atos, eleva-os, idealiza-os, e, em outros casos, determina a sua vulgaridade. Certos gestos, que em circunstâncias ordinárias seriam sórdidos, podem tornar-se poéticos, épicos; quando Cambronne, convidado pelo inimigo a se render, responde a sua palavra memorável, ele se eleva num cenário homérico, e é sublime.
Os homens vulgares quereriam pedir a Circe as poções com que transformou em cedros os companheiros de Ulisses, para receitá-las a todos os que possuem um ideal. Há-os em todas as partes, sempre que se verifica um recrudescimento da mediocridade: entre púrpuras como entre escórias, na avenida e no subúrbio, nos parlamentos e nos cárceres, nas universidades e nas manjedouras. Há certos momentos em que ousam denominar ideais aos seus apetites, como se a urgência de satisfações imediatas pudesse ser confundida com a ânsia de perfeições infinitas. Os apetites se fartam; os ideais nunca.
Repudiam as coisas líricas porque obrigam a pensamentos muito altos e a gestos demasiados dignos. São incapazes de estoicismos: sua frugalidade é um cálculo para gozar mais tempo os prazeres, reservando maior perspectiva de gozos para a velhice impotente. Sua generosidade é sempre dinheiro dado em usura. Sua amizade é uma complacência servil, ou uma adulação proveitosa. Quando cuidam praticar alguma virtude, degradam a própria honestidade, empanando-a com alguma coisa de miserável ou de baixo, que a mácula.
Admiram o utilitarismo egoísta, imediato, mesquinho. Obrigados a eleger, nunca seguirão o caminho que a sua própria inclinação lhes indica, e sim aquele que o cálculo dos seus iguais lhes marca. Ignoram que toda grandeza de espírito exige a cumplicidade do coração. Os ideais irradiam sempre um grande calor; seus prejuízos, em compensação, são frios, porque são alheios. Um pensamento, não fecundado pela paixão, é como o sol de inverno; ilumina, mas, sob seus raios, pode-se morrer de frio. A baixeza do propósito rebaixa o mérito de todo esforço e aniquila as coisas elevadas. Excluído o ideal, fica suprimida a possibilidade do sublime. A vulgaridade é como um vento frio e seco do norte, que gela todo germen de poesia capaz de embelezar a vida.
O homem sem ideais faz da arte um ofício, da ciência um comércio, da filosofia um instrumento, da virtude uma empresa, da caridade uma festa, do prazer um sensualismo. A vulgaridade transforma o amor da vida em pusilanimidade, a prudência em covardia, o orgulho em vaidade, o respeito em servilismo. Conduz à ostentação, à avareza, à falsidade, à avidez, à simulação; por trás do homem medíocre, assoma o antepassado selvagem, que conspira no seu interior, acossado pela fome de atávicos instintos, e sem outra aspiração além da saciedade.
1 Comments:
At 5:24 PM , Raysa said...
Adorei o post!
é de sua autoria ou foi extraído da obra de Ingenieros?
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